segunda-feira, 18 de novembro de 2019


Dia da consciência? De que mesmo? Qual consciência?

A crise brasileira atual é também e antes de tudo uma crise de ideias. Existem ideias velhas que nos legaram o tema da corrupção na política como nosso grande problema nacional. Isso é falso, embora, como em toda mentira e em toda fraude, tenha seu pequeno grão de verdade. Nossa corrupção real, a grande fraude que impossibilita o resgate do Brasil esquecido e humilhado, está em outro lugar e é construída por outras forças. São essas forças, tornadas invisíveis para melhor exercerem o poder real, que o texto pretende desvelar. Essa é a nossa elite do atraso.
Para melhor cumprir meu objetivo, construí este texto sob a forma de uma resposta crítica ao clássico, Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, Souza, publicado em 1936. Como veremos, o livro de Sérgio Buarque é, ainda hoje, a leitura dominante do Brasil, seja na sua modernização em seus epígonos mais famosos, como Raymundo Faoro, Fernando Henrique Cardoso ou Roberto Da Matta, seja na sua influência ampla e difusa nos intelectuais de direita e de esquerda do Brasil de hoje em dia. É a influência continuada dessa leitura na cabeça das pessoas que nos faz de tolos. O sucesso da empreitada de Sérgio Buarque se deve ao fato de ele ter logrado, ao modo dos profetas das grandes religiões mundiais, responder às três grandes questões que desafiam indivíduos e sociedades: De onde viemos? Quem somos? Para onde (provavelmente) vamos? Articular essas três questões centrais de modo convincente permitiu que sua visão se tornasse a interpretação oficial do Brasil sobre si mesmo. Como iremos ver, a Lava Jato se legitima com Sérgio Buarque e seus epígonos; a Rede Globo legitima sua violência simbólica do mesmo modo; ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) se legitimam a partir de suas ideias; e intelectuais importantes da esquerda continuam reproduzindo suas supostas evidências e as de seus discípulos. Tamanho sucesso e ubiquidade é resultado da ação combinada de dois fatores: o primeiro é o fato de Sérgio Buarque haver construído uma narrativa totalizadora – como a das religiões que não podem deixar margem a lacunas e dúvidas – do Brasil e de sua história; e o segundo ponto é o de ter criado a legitimação perfeita para uma dominação oligárquica e antipopular com a aparência de estar fazendo crítica social. É isso que o faz tão amado pela direita e pela esquerda. Tamanha influência ubíqua e convergente me motivou a reconstruir, neste texto, uma contraposição a suas ideias, ponto a ponto, nas três questões seminais que todo indivíduo ou sociedade são desafiados a responder. Como não somos formigas que repetem uma informação genética, nosso comportamento é determinado por uma visão do mundo e das coisas que é “construída”. Essa construção do sentido do mundo era trabalho de religiosos no passado e de intelectuais nos últimos duzentos anos de história. Esse “sentido do mundo” nos parece, então, “natural”, dado que nascemos sob a influência dele, e são pessoas amadas e admiradas, em casa, na escola ou na televisão, que nos apresentam a ele. De tal modo que nos aparece como algo “confiável”. É essa confiabilidade que torna tão fácil a reprodução dos privilégios legitimados por esse sentido, sempre muito específico, e, ao mesmo tempo, torna a sua crítica tão difícil. Épocas de crise como a brasileira atual são, nesse sentido, uma oportunidade única. Na crise, toda legitimação perde sua “naturalidade” e pode ser desconstruída. Mas é necessário que se reconstrua um novo sentido que explique e convença melhor que o anterior. Sem isso, a explicação anterior tende a se perpetuar. É esse esforço que pretendo fazer aqui. A ideia é criticar a interpretação dominante não apenas nas suas falhas conceituais, como já fiz antes em diversas ocasiões,  mas também sua interpretação histórica e factual da realidade brasileira. Essa nova reconstrução histórica, por sua vez, permitirá um diagnóstico, a meu ver, muito mais apurado e convincente da própria realidade atual. Assim, persegui três eixos temáticos bem definidos. O primeiro é tomar a experiência da escravidão, e não a suposta e abstrata continuidade com Portugal e seu “patrimonialismo”, onde não existia a escravidão, como a semente de toda a sociabilidade brasileira. Muitos falaram de escravidão como se fosse um mero “nome”, sem eficácia social e sem consequências duradouras, inclusive Sérgio Buarque e seus seguidores. Compreender a escravidão como conceito é muito diferente. É perceber como ela cria uma singularidade excludente e perversa. Uma sociabilidade que tendeu a se perpetuar no tempo, precisamente porque nunca foi efetivamente compreendida nem criticada. O segundo foi perceber como a luta das classes por privilégios e distinções logrou construir alianças e preconceitos que esclarecem, melhor que qualquer outra coisa, o padrão histórico que se repete nas lutas políticas do Brasil moderno. O principal aqui é evitar compreender as classes de modo superficial e economicista, como o fazem tanto o liberalismo quanto o marxismo. Ao perceber as classes sociais como construções socioculturais, desde a influência emocional e afetiva da socialização familiar, abriram um caminho que esclarece nosso comportamento real e prático no dia a dia como nenhuma outra variável. Essa é uma promessa que faço ao leitor sem medo de fracassar: é possível reconstruir as razões de nossa própria conduta cotidiana, assim como a conduta dos outros que conosco partilham o mundo social, de modo preciso e convincente a partir da reconstrução da herança de classe de cada um. A tradição inaugurada por Sérgio Buarque e arrasadoramente influente até hoje não percebe a ação das classes sociais, daí que tenham criado o “brasileiro genérico”, o homem cordial de Sérgio Buarque ou o homem do “jeitinho brasileiro” para um DaMatta. O conflito entre as classes também é distorcido e tornado irreconhecível, sendo substituído por um falso conflito entre Estado corrupto e patrimonial e mercado virtuoso. Ainda que todo o noticiário atual milite contra essa percepção, sem uma desconstrução do sentido velho e de uma reconstrução explícita de um sentido novo, seremos feitos de tolos indefinidamente. É por conta dessa inércia provocada pela força de concepções passadas que pensamos os problemas brasileiros sob a chave do patrimonialismo e do populismo, dois espantalhos criados para tornar possível a aliança antipopular que caracteriza o Brasil moderno desde 1930. Por fim, o terceiro ponto é o diagnóstico acurado do momento atual. Se os dois pontos anteriores são importantes, sua eficácia deve ser comprovada por um diagnóstico do momento atual mais profundo e mais veraz que o do “racismo culturalista”, como podemos definir o paradigma que estamos criticando. Esse é o convite que faço ao leitor. Adentrar o espaço de uma aventura do espírito que visa libertá-lo das amarras invisíveis das falsas interpretações críticas. Esse é, afinal, o primeiro passo para que, enfim, não mais repitamos a nossa triste história da exclusão recorrente e golpes de Estado, mas que juntos possamos construir algo verdadeiramente novo.
A primeira coisa a se fazer quando se reflete sobre um objeto confuso e multifacetado como o mundo social é perceber as hierarquias de questões mais importantes a serem esclarecidas. Sem isso, nos perdemos na confusão. A questão do poder é a questão central de toda sociedade. A razão é simples. É ela que nos irá dizer quem manda e quem obedece quem fica com os privilégios e quem é abandonado e excluído. O dinheiro, que é uma mera convenção, só pode exercer seus efeitos porque está ancorado em acordos políticos e jurídicos que refletem o poder relativo de certos estratos sociais. Assim, para se conhecer uma sociedade, é necessário reconstruir os meandros do processo que permite a reprodução do poder social real. O exercício do poder social real tem de ser legitimado. Ninguém obedece sem razão. No mundo moderno, quem cria a legitimação do poder social que será a chave de acesso a todos os privilégios são os intelectuais. Pensemos na Lava Jato e em sua avassaladora influência na vida do país. A “limpeza da política” que o procurador Deltan Dallagnol, o intelectual da operação, preconiza para o país é uma mera continuidade da reflexão de Sérgio Buarque e Raymundo Faoro. Certamente Faoro não seria tão primário e oportunista, mas, independentemente de suas virtudes pessoais, são suas ideias de que o Estado abriga uma elite corrupta que vampirizaria a nação que legitimam toda a ação predadora do direito e das riquezas nacionais comandadas pela Lava Jato. O que a Lava Jato e seus cúmplices na mídia e no aparelho de Estado fazem é o jogo de um capitalismo financeiro internacional e nacional ávido por “privatizar” a riqueza social em seu bolso. Destruir a Petrobras, como o consórcio Lava Jato e grande mídia, a mando da elite do atraso, destruiu, significa empobrecer o país inteiro de um recurso fundamental, apresentando, em troca, não só resultados de recuperação de recursos ridículos de tão pequenos, mas principalmente levando à destruição de qualquer estratégia de reerguimento internacional do país. Essas ideias do Estado e da política corrupta servem para que se repasse empresas estatais e nossas riquezas do subsolo a baixo custo para nacionais e estrangeiros que se apropriam privadamente da riqueza que deveria ser de todos. Essa é a corrupção real. Uma corrupção legitimada e tornada invisível por uma leitura distorcida e superficial de como a sociedade e seus mecanismos de poder funcionam.
A construção de uma elite toda poderosa que habitaria o Estado só existe, na realidade, para que não vejamos a elite real, que está “fora do Estado”, ainda que a “captura do Estado” seja fundamental para seus fins. É uma ideia que nos imbeciliza, já que desloca e distorce toda a origem do poder real. Nesse esquema, se fizermos uma analogia com o narcotráfico, os políticos são os “aviõezinhos” do esquema e ficam com as sobras do saque realizado na riqueza social de todos em proveito de uma meia dúzia. Combater a corrupção de verdade seria combater a rapina, pela elite do dinheiro, da riqueza social e da capacidade de compra e de poupança de todos nós para proveito dos oligopólios e atravessadores financeiros. O “imbecil perfeito” é criado quando ele, o cidadão espoliado, passa a apoiar a venda subfaturada desses recursos a agentes privados imaginando que assim evita a corrupção estatal. Como se a maior corrupção – no sentido de enganar os outros para auferir vantagens ilícitas – não fosse precisamente permitir que uma meia dúzia de super-ricos ponha no bolso a riqueza de todos, deixando o resto na miséria. Essa foi a história da Vale, que paga royalties ridículos para se apropriar da riqueza que deveria ser de todos, e essa será muito provavelmente a história da Petrobras. Esse é o poder real, que rapina trilhões e ninguém percebem a tramoia, porque foi criado o espantalho perfeito com a ideia de Estado como único corrupto. É por conta disso que a crítica das ideias dominantes é tão importante. Combatê-las é iniciar um processo de aprendizado para nos libertarmos da situação de imbecilidade e idiotice na qual fomos, todos nós, levados pela estratégia de legitimação do poder real no nosso país. Por conta disso, temos que examinar de que modo “a interpretação dominante” do país ajudou e pavimentou o trabalho sujo da mídia de distorção sistemática da realidade. Sem essa ajuda dos intelectuais mais respeitados entre nós, que produziram uma interpretação falsamente crítica de nossa realidade, a mídia não poderia ter feito seu trabalho de modo tão fácil e que penetrou tão profundamente no imaginário da população.
O presente não se explica sem o passado, e apenas a explicação que reconstrói a gênese efetiva da realidade vivida pode, de fato, ter poder de convencimento. Essa é, inclusive, a razão da força de convencimento do culturalismo conservador entre nós. Ele supostamente explica tudo sem lacunas. Mas, antes de tudo, vamos explicitar brevemente que seja como a semente escravista foi silenciada e substituída por uma interpretação falsa cientificamente e conservadora politicamente. Foi isso que a fez servir tão bem de pressuposto implícito para todo o ataque midiático de hoje em dia.
O trabalho de distorção sistemática da realidade realizado pela mídia foi extremamente facilitado pelo trabalho prévio de intelectuais que forjaram a visão dominante, até hoje, da sociedade brasileira. Como os pensadores que estudam as regras da produção de conhecimento e da ciência sabem muito bem, todo o conhecimento humano é limitado historicamente. Isso significa que, durante décadas e até séculos, todo o conhecimento humano é dominado por um “paradigma” específico. Um “paradigma” é o horizonte histórico que define os pressupostos para qualquer tipo de conhecimento. Normalmente, todas as pessoas são influenciadas pelo paradigma na qual são criadas e ninguém, em condições normais, pensa além de seu tempo. Onde reside o racismo implícito do culturalismo? Ora, precisamente no aspecto principal de todo racismo, que é a separação ontológica entre seres humanos de primeira classe e seres humanos de segunda classe. Entre categorias cegas por suas convicções religiosas, filosóficas ou de gênero.                     
E viva o dia da consciência, mesmo sem termos o mínimo de compreensão do verdadeiro significado desta data que até hoje nada mais é do que um mero feriado.

Texto: Professor em História do Brasil - Fagboala Monteiro.

Biografias: Sergio Buarque de Holanda (Raízes do Brasil)

Fernando Henrique Cardoso (Sociologia e Política do Brasil)

Souza, Jessé: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017.


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