Dia
da consciência? De que mesmo? Qual consciência?
A crise brasileira atual é também e antes de tudo uma crise de ideias. Existem ideias velhas que nos legaram o tema da corrupção na política como nosso grande problema nacional. Isso é falso, embora, como em toda mentira e em toda fraude, tenha seu pequeno grão de verdade. Nossa corrupção real, a grande fraude que impossibilita o resgate do Brasil esquecido e humilhado, está em outro lugar e é construída por outras forças. São essas forças, tornadas invisíveis para melhor exercerem o poder real, que o texto pretende desvelar. Essa é a nossa elite do atraso.
Para melhor cumprir meu
objetivo, construí este texto sob a forma de uma resposta crítica ao clássico,
Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, Souza, publicado em 1936. Como
veremos, o livro de Sérgio Buarque é, ainda hoje, a leitura dominante do
Brasil, seja na sua modernização em seus epígonos mais famosos, como Raymundo
Faoro, Fernando Henrique Cardoso ou Roberto Da Matta, seja na sua influência
ampla e difusa nos intelectuais de direita e de esquerda do Brasil de hoje em
dia. É a influência continuada dessa leitura na cabeça das pessoas que nos faz
de tolos. O sucesso da empreitada de Sérgio Buarque se deve ao fato de ele ter
logrado, ao modo dos profetas das grandes religiões mundiais, responder às três
grandes questões que desafiam indivíduos e sociedades: De onde viemos? Quem
somos? Para onde (provavelmente) vamos? Articular essas três questões centrais
de modo convincente permitiu que sua visão se tornasse a interpretação oficial
do Brasil sobre si mesmo. Como iremos ver, a Lava Jato se legitima com Sérgio
Buarque e seus epígonos; a Rede Globo legitima sua violência simbólica do mesmo
modo; ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) se legitimam a partir de suas
ideias; e intelectuais importantes da esquerda continuam reproduzindo suas
supostas evidências e as de seus discípulos. Tamanho sucesso e ubiquidade é
resultado da ação combinada de dois fatores: o primeiro é o fato de Sérgio
Buarque haver construído uma narrativa totalizadora – como a das religiões que
não podem deixar margem a lacunas e dúvidas – do Brasil e de sua história; e o
segundo ponto é o de ter criado a legitimação perfeita para uma dominação
oligárquica e antipopular com a aparência de estar fazendo crítica social. É
isso que o faz tão amado pela direita e pela esquerda. Tamanha influência
ubíqua e convergente me motivou a reconstruir, neste texto, uma contraposição a
suas ideias, ponto a ponto, nas três questões seminais que todo indivíduo ou
sociedade são desafiados a responder. Como não somos formigas que repetem uma
informação genética, nosso comportamento é determinado por uma visão do mundo e
das coisas que é “construída”. Essa construção do sentido do mundo era trabalho
de religiosos no passado e de intelectuais nos últimos duzentos anos de
história. Esse “sentido do mundo” nos parece, então, “natural”, dado que
nascemos sob a influência dele, e são pessoas amadas e admiradas, em casa, na
escola ou na televisão, que nos apresentam a ele. De tal modo que nos aparece
como algo “confiável”. É essa confiabilidade que torna tão fácil a reprodução
dos privilégios legitimados por esse sentido, sempre muito específico, e, ao
mesmo tempo, torna a sua crítica tão difícil. Épocas de crise como a brasileira
atual são, nesse sentido, uma oportunidade única. Na crise, toda legitimação
perde sua “naturalidade” e pode ser desconstruída. Mas é necessário que se
reconstrua um novo sentido que explique e convença melhor que o anterior. Sem
isso, a explicação anterior tende a se perpetuar. É esse esforço que pretendo
fazer aqui. A ideia é criticar a interpretação dominante não apenas nas suas
falhas conceituais, como já fiz antes em diversas ocasiões, mas também sua
interpretação histórica e factual da realidade brasileira. Essa nova
reconstrução histórica, por sua vez, permitirá um diagnóstico, a meu ver, muito
mais apurado e convincente da própria realidade atual. Assim, persegui três
eixos temáticos bem definidos. O primeiro é tomar a experiência da escravidão,
e não a suposta e abstrata continuidade com Portugal e seu “patrimonialismo”,
onde não existia a escravidão, como a semente de toda a sociabilidade
brasileira. Muitos falaram de escravidão como se fosse um mero “nome”, sem
eficácia social e sem consequências duradouras, inclusive Sérgio Buarque e seus
seguidores. Compreender a escravidão como conceito é muito diferente. É
perceber como ela cria uma singularidade excludente e perversa. Uma
sociabilidade que tendeu a se perpetuar no tempo, precisamente porque nunca foi
efetivamente compreendida nem criticada. O segundo foi perceber como a luta das
classes por privilégios e distinções logrou construir alianças e preconceitos
que esclarecem, melhor que qualquer outra coisa, o padrão histórico que se
repete nas lutas políticas do Brasil moderno. O principal aqui é evitar
compreender as classes de modo superficial e economicista, como o fazem tanto o
liberalismo quanto o marxismo. Ao perceber as classes sociais como construções
socioculturais, desde a influência emocional e afetiva da socialização
familiar, abriram um caminho que esclarece nosso comportamento real e prático
no dia a dia como nenhuma outra variável. Essa é uma promessa que faço ao
leitor sem medo de fracassar: é possível reconstruir as razões de nossa própria
conduta cotidiana, assim como a conduta dos outros que conosco partilham o
mundo social, de modo preciso e convincente a partir da reconstrução da herança
de classe de cada um. A tradição inaugurada por Sérgio Buarque e arrasadoramente
influente até hoje não percebe a ação das classes sociais, daí que tenham
criado o “brasileiro genérico”, o homem cordial de Sérgio Buarque ou o homem do
“jeitinho brasileiro” para um DaMatta. O conflito entre as classes também é
distorcido e tornado irreconhecível, sendo substituído por um falso conflito
entre Estado corrupto e patrimonial e mercado virtuoso. Ainda que todo o
noticiário atual milite contra essa percepção, sem uma desconstrução do sentido
velho e de uma reconstrução explícita de um sentido novo, seremos feitos de
tolos indefinidamente. É por conta dessa inércia provocada pela força de
concepções passadas que pensamos os problemas brasileiros sob a chave do
patrimonialismo e do populismo, dois espantalhos criados para tornar possível a
aliança antipopular que caracteriza o Brasil moderno desde 1930. Por fim, o
terceiro ponto é o diagnóstico acurado do momento atual. Se os dois pontos
anteriores são importantes, sua eficácia deve ser comprovada por um diagnóstico
do momento atual mais profundo e mais veraz que o do “racismo culturalista”,
como podemos definir o paradigma que estamos criticando. Esse é o convite que
faço ao leitor. Adentrar o espaço de uma aventura do espírito que visa
libertá-lo das amarras invisíveis das falsas interpretações críticas. Esse é,
afinal, o primeiro passo para que, enfim, não mais repitamos a nossa triste
história da exclusão recorrente e golpes de Estado, mas que juntos possamos
construir algo verdadeiramente novo.
A primeira coisa a se fazer
quando se reflete sobre um objeto confuso e multifacetado como o mundo social é
perceber as hierarquias de questões mais importantes a serem esclarecidas. Sem
isso, nos perdemos na confusão. A questão do poder é a questão central de toda
sociedade. A razão é simples. É ela que nos irá dizer quem manda e quem obedece
quem fica com os privilégios e quem é abandonado e excluído. O dinheiro, que é
uma mera convenção, só pode exercer seus efeitos porque está ancorado em
acordos políticos e jurídicos que refletem o poder relativo de certos estratos
sociais. Assim, para se conhecer uma sociedade, é necessário reconstruir os
meandros do processo que permite a reprodução do poder social real. O exercício
do poder social real tem de ser legitimado. Ninguém obedece sem razão. No mundo
moderno, quem cria a legitimação do poder social que será a chave de acesso a
todos os privilégios são os intelectuais. Pensemos na Lava Jato e em sua
avassaladora influência na vida do país. A “limpeza da política” que o
procurador Deltan Dallagnol, o intelectual da operação, preconiza para o país é
uma mera continuidade da reflexão de Sérgio Buarque e Raymundo Faoro.
Certamente Faoro não seria tão primário e oportunista, mas, independentemente
de suas virtudes pessoais, são suas ideias de que o Estado abriga uma elite
corrupta que vampirizaria a nação que legitimam toda a ação predadora do
direito e das riquezas nacionais comandadas pela Lava Jato. O que a Lava Jato e
seus cúmplices na mídia e no aparelho de Estado fazem é o jogo de um capitalismo
financeiro internacional e nacional ávido por “privatizar” a riqueza social em
seu bolso. Destruir a Petrobras, como o consórcio Lava Jato e grande mídia, a
mando da elite do atraso, destruiu, significa empobrecer o país inteiro de um
recurso fundamental, apresentando, em troca, não só resultados de recuperação
de recursos ridículos de tão pequenos, mas principalmente levando à destruição
de qualquer estratégia de reerguimento internacional do país. Essas ideias do
Estado e da política corrupta servem para que se repasse empresas estatais e
nossas riquezas do subsolo a baixo custo para nacionais e estrangeiros que se
apropriam privadamente da riqueza que deveria ser de todos. Essa é a corrupção
real. Uma corrupção legitimada e tornada invisível por uma leitura distorcida e
superficial de como a sociedade e seus mecanismos de poder funcionam.
A construção de uma elite
toda poderosa que habitaria o Estado só existe, na realidade, para que não
vejamos a elite real, que está “fora do Estado”, ainda que a “captura do
Estado” seja fundamental para seus fins. É uma ideia que nos imbeciliza, já que
desloca e distorce toda a origem do poder real. Nesse esquema, se fizermos uma
analogia com o narcotráfico, os políticos são os “aviõezinhos” do esquema e
ficam com as sobras do saque realizado na riqueza social de todos em proveito
de uma meia dúzia. Combater a corrupção de verdade seria combater a rapina,
pela elite do dinheiro, da riqueza social e da capacidade de compra e de
poupança de todos nós para proveito dos oligopólios e atravessadores
financeiros. O “imbecil perfeito” é criado quando ele, o cidadão espoliado,
passa a apoiar a venda subfaturada desses recursos a agentes privados
imaginando que assim evita a corrupção estatal. Como se a maior corrupção – no
sentido de enganar os outros para auferir vantagens ilícitas – não fosse
precisamente permitir que uma meia dúzia de super-ricos ponha no bolso a
riqueza de todos, deixando o resto na miséria. Essa foi a história da Vale, que
paga royalties ridículos para se apropriar da riqueza que deveria ser de todos,
e essa será muito provavelmente a história da Petrobras. Esse é o poder real,
que rapina trilhões e ninguém percebem a tramoia, porque foi criado o
espantalho perfeito com a ideia de Estado como único corrupto. É por conta
disso que a crítica das ideias dominantes é tão importante. Combatê-las é
iniciar um processo de aprendizado para nos libertarmos da situação de
imbecilidade e idiotice na qual fomos, todos nós, levados pela estratégia de
legitimação do poder real no nosso país. Por conta disso, temos que examinar de
que modo “a interpretação dominante” do país ajudou e pavimentou o trabalho
sujo da mídia de distorção sistemática da realidade. Sem essa ajuda dos
intelectuais mais respeitados entre nós, que produziram uma interpretação
falsamente crítica de nossa realidade, a mídia não poderia ter feito seu
trabalho de modo tão fácil e que penetrou tão profundamente no imaginário da
população.
O presente não se explica
sem o passado, e apenas a explicação que reconstrói a gênese efetiva da
realidade vivida pode, de fato, ter poder de convencimento. Essa é, inclusive,
a razão da força de convencimento do culturalismo conservador entre nós. Ele
supostamente explica tudo sem lacunas. Mas, antes de tudo, vamos explicitar
brevemente que seja como a semente escravista foi silenciada e substituída por
uma interpretação falsa cientificamente e conservadora politicamente. Foi isso
que a fez servir tão bem de pressuposto implícito para todo o ataque midiático
de hoje em dia.
O trabalho de distorção
sistemática da realidade realizado pela mídia foi extremamente facilitado pelo
trabalho prévio de intelectuais que forjaram a visão dominante, até hoje, da
sociedade brasileira. Como os pensadores que estudam as regras da produção de
conhecimento e da ciência sabem muito bem, todo o conhecimento humano é
limitado historicamente. Isso significa que, durante décadas e até séculos,
todo o conhecimento humano é dominado por um “paradigma” específico. Um
“paradigma” é o horizonte histórico que define os pressupostos para qualquer
tipo de conhecimento. Normalmente, todas as pessoas são influenciadas pelo
paradigma na qual são criadas e ninguém, em condições normais, pensa além de
seu tempo. Onde reside o racismo implícito do culturalismo? Ora, precisamente
no aspecto principal de todo racismo, que é a separação ontológica entre seres
humanos de primeira classe e seres humanos de segunda classe. Entre categorias
cegas por suas convicções religiosas, filosóficas ou de gênero.
E viva o dia da consciência,
mesmo sem termos o mínimo de compreensão do verdadeiro significado desta data
que até hoje nada mais é do que um mero feriado.
Texto: Professor em História
do Brasil - Fagboala Monteiro.
Biografias: Sergio Buarque
de Holanda (Raízes do Brasil)
Fernando Henrique Cardoso
(Sociologia e Política do Brasil)
Souza, Jessé: da escravidão à
Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017.
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