sábado, 2 de junho de 2012

RITUAIS MORTUÁRIOS: ESPAÇO DE CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA Posted on 14/05/2012


RITUAIS MORTUÁRIOS: ESPAÇO DE CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA

Rituais mortuários: espaço de construção identitária

Joanice Santos Conceição*

Os ritos sempre acompanham o homem em diversas fases da sua vida. Tanto o homem moderno quanto o tradicional, ainda que cada qual apreenda de formas e jeitos diferentes, os rituais sempre estarão presentes na vida humana, como o nascimento, o batizado, a primeira comunhão, a circuncisão, o noivado, o casamento, dentre outros. Dos muitos rituais existentes em todas as sociedades falaremos aqui dos ritos de passagem, pois eles exercem grande influência nas diversas fases da vida, porém não podemos esquecer que estes ritos não escapam às exigências dos novos apelos sociais. Assim, as discussões feitas por Mauss, Godelier e Eliade são sempre atuais para pensarmos a função da dádiva e dos rituais. Eliade, por exemplo, nos diz o seguinte:
[...] há também ritos de passagem no nascimento, no casamento e na morte, e pode-se dizer que, em cada um desses casos, se trata sempre de uma iniciação, pois envolve uma mudança radical de regime ontológico e estatuto social. (ELIADE, 1992:150). 
O trecho acima ratifica o que presenciamos no nosso dia-a-dia e ao longo da vida. Entretanto, nossa discussão repousa sobre os ritos mortuários africanos que persistem resistindo às novas formas de práticas ritualísticas. E uma vez que podemos observar em diferentes sociedades tais rituais, é preciso salientar, sobretudo, que em todas essas sociedades os ritos mortuários cumprem suas funções. Dentro da visão de mundo africana, especialmente para os iorubanos, Os Egugun ou ancestrais são homenageados por meio de cultos rituais, cuja tarefa é de materializar-lhes no mundo dos viventes e lembrar-lhes da vida passada. Esses rituais possibilitam o encontro dos seres divinizados com entes familiares aqui no aiyê e, simultaneamente, cumprem a função de conexão entre a vida e a morte, ao mesmo tempo em que reforçam as relações sociais. Ao falar sobre a função dos ritos em diferentes sociedades, Godelier acrescenta:
Não é o objeto que cria as diferenças, são as diversas lógicas dos domínios da vida social que lhes conferem sentidos diferentes na medida em que se deslocam de um para outro e trocam de função e de emprego. (2001:165).
Assim, os ritos mortuários presentes em todas as sociedades cumprem em cada grupo a sua função e ainda que em cada uma dessas populações eles sejam compreendidos de maneira diferente, mesmo assim eles são carregados de significados e exercem grande influência mítica, contribuindo para a formação identitária daquele grupo.
Na medida do possível, faremos algumas aproximações entre a idéia de morte descrita por Mauss e as concepções que envolvem os rituais mortuários de matriz africana preservados no Brasil que, segundo Braga (2006), a noção de ancestralidade afro-brasileira forjada no interior do culto aos ancestrais parece ser um elemento exponencial na construção da identidade étnica da população negra nos terreiros de Orixá e de Egun em São Paulo e na Bahia, onde realizamos algumas observações.
Particularmente, esses rituais são muito complexos, compostos por várias etapas, sendo que algumas delas são restritas aos familiares e adeptos da religião. Além disso, existem cerimônias específicas em que esses espíritos ancestrais se fazem presentes no aiyê, isto é, no mundo dos vivos por meio de ritos próprios para tais circunstâncias. É necessário dizer que os ritos para os ancestrais ou Egun são praticados em espaço diferente daquele em que se cultuam os orixás, pois estes pertencem a outra dimensão. Geralmente estes ritos encerram muitos tabus e são carregados de símbolos e significados pouco conhecidos pela sociedade mais ampla circundante, até mesmo por uma grande parte dos adeptos aos orixás.
Neste sentido, as concepções de vida relativas ao homem africano diferem daquelas investigadas por Mauss, visto que naquelas culturas existem um forte apelo para punições. A idéia de finitude, o conceito de céu e de inferno, além de um julgamento pós-morte fez com Mauss refletisse sobre os efeitos físicos da morte, especialmente, no momento em que o indivíduo se julgava enfeitiçado ou castigado por deus.
Em contrapartida, tanto na população estudada por Mauss quanto na população africana, sobretudo, a iorubana, as pessoas são compostas de duas porções: a física e a sobrenatural, embora concebidas de maneira completamente diferente. Enquanto a primeira está associada a estágios distintos, na segunda a morte representa uma passagem, já que tudo acontece num mesmo círculo, sem ruptura, ou seja, aqui a pessoa é vista na sua totalidade. A morte é concebida como um valor civilizatório como outros elementos culturais, tais como: oralidade, memória, corporeidade, musicalidade, dentre outros. Essa idéia da totalidade humana é referida na vida cotidiana de algumas populações africanas, principalmente na região da Nigéria e mostra-se em consonância com o pensamento de Mauss, como ele assinala no fragmento abaixo:
[...] A consideração do social é necessária. Inversamente, a simples consideração desse fragmento de nossa vida que é nossa vida em sociedade não basta. Vê-se aqui de que modo o “homo duplex” de Durkheim se situa com mais precisão, e de que modo podemos considerar sua dupla natureza.
E acrescenta. 
[...] por fim, desse duplo ponto de vista, do estudo da totalidade da consciência e da totalidade da conduta, penso que esses fatos são interessantes. Eles opõem essa “totalidade” daqueles que chamados impropriamente primitivos, à dissociação característica dos homens que somos, sentindo nossas pessoas e resistindo à coletividade. (2003:364).
Embora o fragmento do texto de Mauss esteja em consonância com a visão de mundo dos africanos, estes últimos possuem maneiras distintas para apreender o social, bem como a totalidade. Posto que para os iorubanos não existe o conceito de punição – homens, mulheres e criança vão para o mesmo lugar -, também não há julgamento, logo os Espíritos podem retornar à vida do Orun – o mundo sobrenatural onde estão as divindades.
Ao refletir sobre a constituição do homem compreendemos que esta constituição é composta por dupla natureza: uma que se refere à coletividade[1] e outra feita individualmente, uma parte sagrada e uma profana, pois o homem estabelece relações com seus pares, com a natureza e os animais, portanto o viver em sociedade não basta e como a porção sagrada é parte de um todo, logo o homem é por natureza um ser dual. A este processo Durkheim (1989) chamou de homo duplex.
Para Godelier quando o sagrado aparece o real torna-se opaco e no momento em que a porção sagrada do homem surge o real tende a desaparecer, possibilitando o contato apenas com a natureza sagrada, fato que pode ser observado no candomblé, ou seja, quando o orixá está presente a pessoa real desaparece e o que prevalece é a atitude do ser divinizado – o Orixá. Igualmente podemos pensar na transubstanciação que ocorre durante a missa, momento em que o sacerdote diz que quem está presente é o corpo e sangue de Cristo. Neste instante o padre deixa o vinho de uva e o biscoito de farinha tornarem-se o corpo e o sangue de Cristo. Este duplo imaginário existente no homem é ao mesmo tempo parte das relações sociais e individuais, como nos mostra Godelier.
O círculo se fecha. As idéias correspondem às coisas. As coisas e os fatos correspondem às idéias. A verdade é verificada. Se evidência não pode ser negada. O homem encontra-se murado no mundo de suas representações e de seus desejos, de sua vontade. E no curso do mesmo processo são suas relações sociais que se constroem de modo tal que a opacidade necessária à sua existência, à sua a reprodução, possa, ao mesmo tempo, ser reproduzida.
Portanto não estamos lidando com fenômenos puramente intelectuais,  porém, mais profundamente, com a parte que o pensamento assume no próprio processo de reprodução das relações sociais, com a parte ideal do real social. (2001:204-205).
Em contrapartida, ao revelar o sobrenatural o que prevalece é o objeto imaginado, então a opacidade encobre uma parte deste duplo[2] e carrega consigo a consciência coletiva e individual, elementos imprescindíveis nas relações sociais. Por isso Godelier (2001) insiste em dizer que o sagrado traveste o social, torna-o opaco a si mesmo. No momento em que o imaginado aparece desaparecem o individual e o coletivo, prevalecendo, apenas, o sobrenatural. É por assim dizer um se esconde para revelar o outro. Portanto, nas sociedades atuais o mito tem o papel de revelar o sobrenatural ocultando o real.
Trouxemos até agora algumas reflexões em torno dos principais ritos que envolvem a vida humana, especialmente os mortuários, levando-se em consideração as funções desempenhadas pelos ritos no processo da dádiva discutida por Mauss, já que na morte há a idéia de troca, ainda que esta seja apreendida de maneira diferente. Na idéia de morte entendida por Mauss há a troca da vida pela morte, enquanto que para alguns povos há uma mudança de estágio, na medida em que a morte significa continuidade. O que ocorre é a vida numa outra dimensão, conhecida pelos adeptos das religiões de matriz africana como orun, lugar onde vivem os espíritos ancestrais, também conhecidos como Egun, como é o caso da visão sobre mortuária dos africanos.
Ainda caminhando nesta linha de raciocínio, Mauss discorreu sobre diversos tipos de trocas, tais como as trocas materiais e simbólicos. É sobre estas últimas que nos ocupamos ao longo deste texto, ou seja, tratando de um duplo elemento que se torna opaco ao revelar do outro, ou seja, a vida compreendida por nós como infinita, como um valor civilizatório que está num círculo, na qual simbolicamente não há ruptura e vida e morte fazem parte deste mesmo círculo. Se assim entendemos a morte há uma divergência entre a idéia proposta por Mauss, Godelier e Eliade, pois todos eles afirmam que é necessário haver uma morte para o surgimento de uma nova vida. É preciso morrer (naturar) e nascer para algo superior, que seja ao mesmo tempo religioso e cultural, dizia Eliade (1996).
A partir da reflexão do conceito de morte para os africanos, Leite (1982) nos dá uma belíssima definição:
A Imortalidade em causa, entretanto, não é aleatória; está referida à sociedade que a concebe, seja através da inserção desse princípio na massa ancestral após a morte do corpo, seja por forças da reencarnação. Ela é assim, uma imortalidade diferenciada e não pode ser compreendida a não ser, enquanto proposição histórica que estabelece relações vitais entre o natural e o social. (1982:87).
Com esta citação o autor deixa claro que a concepção de morte só pode ser compreendida se levarmos em conta os fatores históricos e sociais, mostrando-nos que tal noção está sempre atrelada às relações que uma determinada sociedade estabelece com as coisas terrenas e as coisas sobrenaturais.
Para além do palpável está o conceito de imortalidade, por sua vez algo irreal, mas também real. É irreal do ponto de vista que são Espíritos Ancestrais, que vivem numa outra dimensão e são reais quando se pode ouvi-los, vê-los dançar e andar a partir da inferência dos ritos e rituais realizados adequadamente para que estes Espíritos venham ao nosso meio. Para elucidar, Braga acrescenta:
O espírito ancestral representado pela roupa é a expressão simbólica de um mundo inatingível pelos vivos. Por isso, comporta mistério sagrado e profano, só alcançado após a morte. (1992:107).

Os ritos e sua função na vida humana
Falamos dos diversos ritos pelos quais passa o homem durante a sua existência terrestre. Ritos estes que vão desde o nascer até a sua morte, uma vez que estamos tratando a morte como algo cíclico, portanto entendida como estágio. São estes rituais ao longo da vida que darão a plenitude humana, na medida em que o indivíduo ao nascer ainda não se encontra totalmente acabado, necessitando, desta forma, dos ritos para completá-lo e por isso tornam-se imprescindíveis sucessivos rituais a fim de inserir o indivíduo no meio social.
Em muitas culturas o nascimento, o batizado e o casamento são comemorados. Em outras culturas a passagem da adolescência para idade adulta é marcada por diversas comemorações que, em alguns casos, incluem alguns sinais que diferenciam o indivíduo dos demais adolescentes. Assim como ao longo da vida o indivíduo também receberá outras marcas corpóreas, que representarão outras passagens de sua vida social, é somente graças a esses ritos que o indivíduo ingressa na sociedade dos viventes (ELIADE, 1996).
A preparação do corpo de um membro do candomblé no sepultamento, dentro dos princípios africanos, é realizada numa grande cerimônia supervisionada por um outro Egungun, além disso são realizados rituais específicos com oferendas e sacrifícios para marcar o local do sepultamento. Existem também outras cerimônias que homenageiam os Egun. Obrigatoriamente estas festas são realizadas em espaços diferentes onde são cultuados os Orixás, já que são os princípios distintos. No Brasil, em especial na Ilha de Itaparica, na Bahia, fica a Casa do Babá Egun, a mais famosa de todas no Brasil. 
A complexidade que envolve os rituais mortuários está relacionada com a transformação – e não com uma mudança qualquer -, numa ordem ontológica e social, uma vez que os ritos são legitimados pela sociedade ou coletividade, porém em alguns casos a idéia de morte pode conter vários elementos que estão para além de causas naturais, mas sim amplamente ancoradas no social e respaldadas pela coletividade.
Ao estudar a sociedade australiana Mauss observou que as ações da moral sobre o físico eram mais notáveis, pois os indivíduos apresentavam muita resistência física e que esta última se contrapunha à idéia de fragilidade psicológica, uma vez que essas pessoas apresentavam muita fragilidade física quando algo se referia à magia, isto é, mesmo que o indivíduo estivesse sadio e sem nenhuma doença mas se este mesmo indivíduo ao acreditar que algum tipo de magia entrou em seu corpo poderia morrer em poucos dias, pois já não possuía quaisquer forças para lutar contra algo desconhecido.
Este fato também pode ser amplamente verificado em Cachoeira, na Bahia. Há muitos anos as pessoas informalmente comentavam que as mães e pais-de-santo possuíam poderes mágicos capazes de provocar a morte em até 24 horas. Sobre este ponto Mauss diz:
Esse estado coincide geralmente com a ruptura de comunhão, seja por magia, seja por pecado com as forças e coisas sagradas cuja presença normalmente o sustenta. (2003:350)
A partir do pensamento de Mauss a morte provoca uma mudança brusca, já que o corpo desaparece do convívio social. Desta forma, os ritos que precedem a morte do indivíduo é de extrema importância para que o espírito encontre a comunidade dos mortos e este seja aceito neste novo grupo.
Em algumas sociedades africanas o sepultamento ritual é o que verdadeiramente confirma a morte do indivíduo, princípio também observado nas religiões brasileiras que se baseiam na matriz africana, especialmente nas casas mais tradicionais em que o rigor é a tônica de todos os rituais mortuários denominados axexê – que em momento oportuno descreveremos os rituais que o compõe. Neste contexto, a presença da coletividade, ou melhor, dos indivíduos torna-se essencial para a legitimação de tal prática. Neste sentido Mauss segue analisando a importância do social para a legitimação de um ato:
O que lhes confere um caráter social ainda mais marcado; pois eles dependem evidentemente da presença ou ausência de um certo número de instituições e de crença precisas desaparecidas do leque das nossas: a magia, as interdições ou tabus etc. (Mauss, 2003:350).
Vimos que o social corrobora para que a morte encontre um lugar na vida das pessoas. Assim, também as causas morais ou religiosas contribuem para que a morte possa ocupar um lugar na existência humana, isto é, se um determinado indivíduo comete uma violação de uma regra respeitada por todos os demais da sociedade na qual vive, o mesmo poderá pagar com a própria vida para que seja reparada tal violação, desde que seja um consenso de toda a população.
Eliade ao discorrer sobre o sepultamento ritual observa que:
Aquele que não é enterrado segundo o costume não está morto. Além disso, a morte de uma pessoa só é reconhecida como válida depois da realização das cerimônias fúnebres, ou quando a alma do defunto foi ritualmente conduzida a sua nova morada, no outro mundo, e lá foi aceita pela comunidade dos mortos. (1996:151)
Este pensamento de Eliade (1996) está em convergência com a mentalidade africana no que se refere à morte, principalmente quando observamos as falas de mães e pais-de-santo que afirmam categoricamente que ao morrer gostariam de ser enterrados à maneira religiosa africana, mas que na ausência de uma sacerdotisa ou sacerdote possuidores de conhecimentos apropriados para realizarem todos os procedimentos dentro dos princípios religiosos, dizem preferirem um sepultamento como o de qualquer outro brasileiro. Embora sejam rituais extremamente complexos e secretos, as pessoas têm consciência da importância de práticas rigorosas. Sobre esse tema Leite acrescenta:
[...] a expressão secreta é utilizada para indicar a existência de grupos de pessoas detentoras de conhecimentos específicos relacionados com determinadas instâncias, as quais podem envolver o mágico e o sagrado. Embora uma grande parte de suas ações rituais seja fechada a comunidade conhece a existência dessas associações e mesmo, muitas vezes, quais postos e funções são ocupadas e exercidas pelos seus dignatários (1982:91).
Segundo Leite (1982), estes rituais contribuem, sobretudo, para fortalecer as relações sociais. Embora haja quem conteste que os ritos mortuários praticados no Brasil conservem poucos elementos rituais dos que aqui foram apontados, contudo, é preciso ressalvar que houve rupturas, ressignificações e adaptações para que pudessem ser mantidos traços mais característicos de sua cultura, pois sem ruptura não há continuidade, assinala Bernardo (2003).
A partir da ruptura pode-se assistir ao encontro de elementos tradicionais em contato com elementos modernos e esta é uma das muitas formas que fez com houvesse a preservação desta cultura ancestral. Assim poderíamos pensar que em cada diáspora africana pode-se encontrar os mesmos ritos mortuários oriundos do continente africano, porém com algumas diferenças, como em Cuba ou no Haiti. O que nos interessa é saber que a sua base foi mantida, ou seja, uma vez que tais rituais continuam a desempenhar funções preponderantes, cuja finalidade é readquirir a organização face ao desequilíbrio entre os viventes causada pela morte. (Leite, 1989).
O segredo é para ser guardado
Os primeiros negros e negras que aqui chegaram trouxeram consigo a sua cultura e aos poucos foram encontrando um jeito particular para lidar com o processo escravista,  ressignificando, reinterpretando a realidade com o objetivo de manter seus traços culturais mais característicos.  
Muitos estudos análogos sobre as religiões africanas objetivavam a compreensão da visão de mundo daquelas sociedades, ao mesmo tempo constituem-se em importantes estratégias utilizadas para a manutenção de traços culturais. Além disso, quase todos os setores das sociedades africanas estavam ancorados em pilares religiosos, ou seja, a religião em grande parte da África é o sistema organizador do social, do político e do econômico, isto é, as decisões a serem tomadas são consultadas em primeiro lugar por meio do líder religioso. Mas qual seria a relação dos ritos mortuários e a dádiva discutida por Mauss e Godelier?
A partir da posição de Mauss que diz que nem tudo pode ser trocado, uma vez que existem elementos que devem ser guardados, entendemos que os ritos são elementos que não circulam e quando isto acontece é feito de maneira bem restrita. Seguindo a mesma linha de raciocínio de Mauss, Godelier ressalta a necessidade de nem tudo não ser trocado ou divulgado, justificando que guardar uma informação, reter um determinado objeto é preservar um certo poder. Como bem expressou neste fragmento:
[...] o que demonstra que nas crenças dos baruyas há lugar, como qualquer religião, para alguns silêncios, algumas amnésias, sobretudo nos casos em que ser surdo, cego ou perder a memória pode ser útil, e mesmo necessário, para manter o poder. (2001:180).
Esta idéia trabalhada por Godelier converge, em certa medida, com a visão de mundo dos africanos, pois ao mesmo tempo em que tudo deve ser compartilhado, estes indivíduos também limitam esta partilha, já que nem todos estão preparados para ter, adquirir ou manipular determinados conhecimentos. Este acesso, para alguns, é feito de maneira processual, respeitando certa idade para que possa ser submetido a alguns rituais. O segredo torna-se muito importante para a preservação de um certo ethos.
Diante do processo de modernização que passa o mundo, no qual de um lado fica a tradição presente por meio dos seus ritos e do outro a modernidade que dá amplo acesso a todos e a tudo, poderíamos então perguntar: qual a função da dádiva para o homem moderno e qual o lugar dos rituais para a atualidade?
Nesta perspectiva, os ritos mortuários e as concepções de segredo que estão presentes na base dos rituais mortuários de matriz africana, principalmente naquilo que concerne os símbolos religiosos, que auxiliam na construção do imaginário dos adeptos do candomblé brasileiro, contribuem para a preservação de um determinado ethos, em especial no que diz respeito às noções de segredo, tendo em vista que estes ritos são considerados como ethos de uma tradição que se reveste de um caráter sigiloso. Geertz discutindo sobre a construção de uma visão de mundo a partir da religião expõe:
Desta forma os símbolos sagrados relacionam uma ontologia e cosmologia com uma estética e uma moralidade: seu poder peculiar provém de sua suposta capacidade de identificar o fato com o valor no seu nível mais fundamental, de dar sentido normativo abrangente àquilo que, de outra forma, seria apenas real (Geertz, 1978: 144).
Vimos até aqui que assim como um casamento, uma festa de formatura, um batizado, uma feitura de um filho-de-santo contribuem para o ingresso na esfera social, a morte também marca uma nova fase da vida humana. E mesmo que a morte esteja associada ao desaparecimento material da pessoa ainda assim ela assinala para um outro momento, pois a morte, como outros princípios africanos, acontece dentro de um círculo e torna-se necessária para a continuidade do círculo. Deste modo, o que era para ser considerado como um fim último acaba por se tornar uma ruptura do ponto de vista social, já que aquele que morreu já não faz parte do mundo material e visível, enquanto que para o mundo espiritual ele está presente, mudando de posição dentro do círculo da vida. E por isso o segredo torna-se necessário na preservação de saberes tradicionais.
A partir desta premissa, podemos dizer que os rituais são importantes para que a pessoa que morreu possa existir no meio social e assim os rituais têm o papel de tornar possível o contato do ser divinizado ou Egun com o mundo dos vivos, uma vez que só através dos ritos é possível trazê-lo ao Orun.
O estudo de um dos muitos aspectos que envolvem a vida do homem está ligado ao ato de morrer, o que significa que este é mais uma característica para reforçar as relações sociais, ao mesmo tempo em que também reforça as relações entre natureza e cultura, natural e sobrenatural, isto é, entre o Aiyê e o Orun, entre vivo e morto, entre o visível e o invisível. Mauss mostrou que os rituais mortuários possuem sua eficácia simbólica a partir do momento em que todo o grupo legitima, igualmente acontece com outros rituais de passagem que compõem a vida cotidiana. Como bem explicita Morin:
Toda palavra pode ser símbolo, mas o símbolo transborda para fora da linguagem e pode responder no interior de qualquer sinal, de qualquer forma e de qualquer objeto. O símbolo é a coisa quer abstrata quer particular que contem em si todo o concreto e a riqueza que simboliza. (MORIN, 1970).
Por mais que a morte seja vista por grande parte dos ocidentais como algo fantasmático, a sua simbologia é parte integrante do imaginário identitário de todos os seres humanos. E ainda que procuremos colocar a morte longe do plano terreno o símbolo mortuário é parte indissociável do homem.
Considerações finais
Refletir sobre a temática mortuária, a partir dos preceitos africanos, é sem sombra de dúvida uma tarefa um tanto quanto difícil, porque requer uma nova postura frente a uma cultura complexa que se afasta da maneira ocidental de pensar. No primeiro momento é necessário mudar as lentes para enxergar o que cada gesto nos procura mostrar. Num segundo momento requer que o pesquisador tente entender os fenômenos levando em conta seu contexto sócio-cultural.
Fazer o exercício de pensar a morte tendo como base o pensamento de Mauss nos levou a entender que embora os rituais mortuários sejam diferenciados em cada cultura, ainda assim existem características basilares que podem ser encontradas em qualquer cultura, tal como a concepção de natureza humana passa pelo individual e coletivo, pelo visível e invisível, portanto a pessoa humana é dupla em qualquer sociedade. Neste sentido, a dualidade é uma marca diferencial entre os seres vivos.
O exercício reflexivo apresentado até aqui reforça a nossa idéia de que os saberes tradicionais serão preservados por meio dos rituais pouco circuláveis que tendem a garantir a especificidade de um determinado grupo, contribuindo, sobremaneira, para revelar uma das identidades da população negra e daqueles que enxergam a morte não como um fim último, mas, sobretudo, como um processo contínuo e necessário. 

Bibliografia
BERNARDO, Teresinha. Negras Mulheres e Mães: lembranças de Olga de Alaketu. São Paulo, EDUC; Rio de Janeiro: Pallas, 2003.
BRAGA, Julio. Ancestralidade afro-brasileira: o culto de Babá Egum: Salvador. CEAO/Ianamá;. 1992.
__________. Candomblé: tradição e mudança. Salvador: P555 Edições. 2006.
DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa: o sistema totêmico na Austrália. São Paulo. Edições Paulinas, 1989.
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro. Zahar, 1978.
GODELIER, Maurice. O enigma do dom. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
LEITE, Fabio da Rocha. Uma Questão Ancestral. São Paulo, FFLCH/USP, 1982.
MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.
MORIN, Edgar. O homem e a morte. Portugal: Publicações Europa-América. 1970.


* Mestre e Doutoranda do Programa de Estudos Pós-graduados de Ciências Sociais/Antropologia da PUC-SP.
[1] Sobre o mesmo tema ver ELBEIN, Juana. 1984.
[2] Morin em sua obra O homem e a morte (1970) faz uma importante e detalhada discussão sobre o duplo presente na constituição do homem.

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